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Filme “Uma Noite de 12 Anos” retrata prisão do ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica e outros dois guerrilheiros tupamaros. E escancara como, num regime autoritário, a crueldade é a lei.

Manoel de Oliveira, um dos mais longevos e competentes cineastas portugueses (morto aos 106 anos em 2015), dizia que o cinema não só é o espelho da vida, como é o único espelho da vida. “E sendo-o é também a memória da vida.” Memória essencial.

Nestes tempos de banalização da maldade, em que o totalitarismo e a violência espreitam, é uma necessidade aprender ou refrescar a memória sobre o que foram os anos de chumbo – as ditaduras estabelecidas com apoio norte-americano entre os anos 1950 e 1980 –, quando milhares de pessoas em toda a América Latina foram vítimas de prisões. Tortura, desparecimentos e assassinatos. E um alerta sobre o que pode estar por vir.

O longa-metragem Uma Noite de 12 Anos cumpre à perfeição essa missão. Trata-se de um chacoalhão naqueles que relativizam a tirania do regime, mas sem deixar que a violência extrema desvie da atenção o essencial: o horror e a crueldade dos que abusam do poder desmedido, sem freio, nenhum controle social e nenhum limite humanitário.

Produção conjunta de Uruguai, Espanha e Argentina, o filme é dirigido por Álvaro Brechner, cineasta uruguaio responsável também pela direção dos premiados Mal Dia para Pescar e Mr. Kaplan. E choca pelas arbitrariedades cometidas contra três guerrilheiros tupamaros que lutaram contra a ditadura instalada no Uruguai entre 1973 e 1985.

Um deles, José Alberto Mujica, o Pepe, viria a ser o presidente do país (2010-2015). Aos 83 anos, Mujica renunciou em setembro ao cargo de senador vitalício. Os outros são Mauricio Rosencof, o Russo – jornalista, dramaturgo e poeta, foi diretor de Cultura da capital uruguaia, Montevidéu –, e Eleuterio Fernández Huidobro, El Ñato – ministro da Defesa desde 2011 e morto em 2016, ainda no comando da pasta.

Capturados pela repressão em diferentes situações, eles são retirados da prisão e passam a servir como reféns do regime, moeda de troca na luta contra as ações dos tupamaros.

As interpretações magistrais de Antonio de la Torre (Mujica), Chino Darín (Rosencof) e Alfonso Tort (El Ñato) dão a medida da dor e do horror desses 12 anos de reclusão, mas também da força e da integridade dos combatentes. Como quando, perguntado pelos guardas por que continuava lavando as panelas em meio ao momento em que seria libertado, El Ñato diz: “E para os que irão usar depois”.

Com os prisioneiros muitas vezes à beira da morte por inanição, a maior provação talvez tenha sido a manutenção da sanidade mental. Durante mais de 4 mil dias viveram em quase completo isolamento – quebrado apenas pelo contato com os guardas ou esparsas visitas dos familiares que nunca desistiam de buscá-los. Mudam com frequência de cárcere, mas sempre permanecendo em celas privadas de luz do sol, sem ter o que contemplar, sem qualquer distração que permitisse esquecer por um minuto que fosse o desespero da incerteza, da solidão, da violência cotidiana, da condição desumana em que estavam encerrados.

A tenacidade dos três guerrilheiros na luta pela democracia é diretamente proporcional à covardia e de seus opositores. Não se sabe se foi o treinamento tupamaro ou os quase 4.400 dias nas mãos dos ditadores cegos pelo poder que forjaram alguns dos mais geniais e dignos homens públicos da história recente da América Latina. Mas presença marcante das mulheres no filme – companheiras, filhas e a mãe de Mujica que em cenas esparsas dá mostras de onde veio a resistência necessária para passar por tantas provações – encerra uma verdade e uma homenagem àquelas que nunca abandonam a luta, ainda que pareça, por tanto tempo, totalmente infrutífera.

Ditaduras sangrentas como as do Chile e Uruguai começaram a enterrar seus regimes militares por meio de consultas populares. Plebiscitos, no Uruguai em 1980 e no Chile em 1989, recusaram aval popular aos regimes de exceção e abriram caminhos para a restauração democrática. Nos dois países, como na Argentina, ditadores, torturadores e assassinos foram punidos. O Brasil, no entanto, iniciou sua retomada democrática “lenta, gradual e segura” em 1978 por meio de um pacto de impunidade de seus tiranos. Só em 1985 os militares deixaram o poder. Mais de três décadas depois do fim de uma ditadura que consumiu do país 21 anos de vidas e história, os brasileiros tragicamente correm o risco de ter sua democracia enterrada pelo voto.

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Fonte:Cláudia Motta/RBA