Um ano depois do impeachment da presidenta Dilma Roussef, ARTE fez uma radiografia das consequências do golpe. Em “Brasil – O Grande Passo para Trás”, Gregório Duvivier encontra movimentos de resistência.
“Uma crise profunda”, “uma cativante radiografia das mudanças em curso, entre o recuo democrático e a resistência”. É assim que o canal público de TV franco-alemão ARTE descreve o documentário “Brésil – Le Grand Bond Arrière, do francês, Brasil – O Grande Passo para Trás”, que apresenta os protagonistas do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, as consequências alarmantes para a população brasileira e o movimento de resistência popular que vem ganhando força.
Com pouco mais de 55 minutos de duração, o filme dirigido por Frédérique Zingaro e Mathilde Bonnassieux mostra ao público europeu o quanto o Brasil retrocedeu em tão pouco tempo. “Menos de um ano e meio de sua eleição, apesar das 54 milhões de pessoas que lhe depositaram sua confiança para um segundo mandato, alguns celebram, outros denunciam um golpe de Estado, mas, em todo o país, a sensação é de mal-estar. Os deputados que deveriam representar e trabalhar pelo futuro do Brasil votaram em nome de suas famílias, de seus filhos, de suas mulheres e de suas religiões, e não em nome do povo ou do país. Pela primeira vez, o povo viu a verdadeira cara de seus políticos”, narra o documentário já nos primeiros minutos.
O humorista Gregório Duvivier, um dos criadores da série Porta dos Fundos, é uma espécie de anfitrião do documentário e, além de criticar os protagonistas políticos responsáveis pela situação em que o país se encontra, vai ao encontro de movimentos e pessoas que fazem resistência, como por exemplo os Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra e dos Sem Teto, de estudantes secundaristas que promoveram acampamentos em escolas e uma parte da imprensa independente.
A imprensa tradicional é completamente desmascarada em seus objetivos. “O novo presidente Michel Temer poderia bem estar implicado nos casos [de corrupção] da Lava Jato. Mas disso, a imprensa – toda a imprensa – não fala nunca”, pontua a locução em off. Um dos entrevistados, o jornalista Luiz Carlos Azenha, concorda: “O Brasil está muito próximo de uma ditadura midiática, uma ditadura forjada por meia dúzia de famílias. Estamos perto disso. Eu tenho uma longa história no jornalismo e nunca vi nada parecido com o que está acontecendo agora”.
O filme descreve o presidente Michel Temer como um mero representante de uma classe que visa apenas seus próprios interesses. “Chocados, os brasileiros se calaram, mas remoem: os muros exibem o espírito do povo, “fora Temer”. A taxa de popularidade do novo presidente está próxima de zero hoje. Ela talvez fique negativa se ele for citado também nos casos de corrupção, como dois terços dos deputados. Temer não tem nenhuma legitimidade popular. Ele é simplesmente a vitrine de uma maioria parlamentar discrepante ferozmente dedicada aos próprios interesses, como os deputados da bancada rural que não têm vergonha alguma de exibir seu poder”, segue a narração.
E para provar o que vem a dizer, o vídeo segue com uma entrevista com o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP): “A agricultura é a base do país. Se você não colocar um ministro que fale a mesma língua que a nossa frente parlamentar, não fica muito tempo, nem o ministro nem o presidente”.
Em seguida, o parlamentar Luiz Carlos Heinze (PP-RS) apresenta sua fazenda, sua família e suas milhares de cabeça de gado. O parlamentar que levou o Prêmio de Racista do Ano da Survival, entidade internacional de defesa das populações indígenas, é apresentado como um “modelo de sucesso à la brasileira” por fazer parte de uma das famílias abastadas que recebeu terras durante a ditadura militar.
“Se o Brasil colhe 200 milhões de toneladas de grãos e tem um rebanho de mais de 200 milhões de cabeças de gado, tudo isso foi plantado naquele momento”, declara orgulhoso o político. “Mas quando o PT tomou o poder e começou a dividir as terras com os sem-terra e os indígenas, ele ficou evidentemente bravo. O “bom” deputado se deu conta de que ele não gostava de todas as formas de divisão”, zomba a narração.
Entre os retrocessos do governo Temer apresentados pelo filme estão os cortes de incentivo à agricultura familiar, aos programas de habitação popular como o Minha Casa Minha Vida, entre outros. O tempo todo reforça-se que nada disso é mostrado pela grande mídia, apenas pela imprensa alternativa, “que vem se desenvolvendo rápido”, como é o caso da Agência Pública, devidamente apresentada pelo filme.
O recuo à direita nas prefeituras brasileiras e na política de vários países da América Latina também são temas que vêm à tona na obra. É claro que o cenário geral é desanimador, mas nem só lamentação (e vergonha alheia) chegam ao espectador. Além da esperança vinda da mídia independente, Gregório Duvivier pontua que é notável a resistência popular exalada pela nova geração. O longa metragem afirma que as ocupações das escolas por estudantes são o “símbolo de um país que traz de volta oxigênio para a democracia”.
A indústria brasileira do cinema – que tem como principal distribuidora a Globo Filmes – vem investindo recursos captados em leis de incentivo fiscal em filmes de ficção que romanceiam e glamorizam o pano de fundo de golpe – um deles, baseado na Lava Jato, tem sido fracasso de público. Cabe, então, aos produtores independentes internacionais apresentar a narrativa do momento histórico brasileiro.
Brasil – O Grande Passo para Trás não está mais disponível na página da ARTE, mas pode ser assistido em diferentes canais no YouTube, a maioria em francês e sem legendagem.
O link apresenta a versão alemã com legenda em português:
Fonte: Xandra Stefanel / Especial para RBA