Créditos: Imprensa SINSSP

Um erro logístico cometido em janeiro de 2021, por Tarcísio de Freitas (Republicanos), então ministro da Infraestrutura e atual candidato a governador de São Paulo, atrasou em até 66 horas a chegada de 160 mil m³ de oxigênio a Manaus (AM).

Até então, a falta do insumo hospitalar já havia provocado a morte de pelo menos 30 pessoas por asfixia em hospitais e postos de saúde, em um dos momentos mais trágicos da pandemia no Brasil.

A Força Aérea Brasileira (FAB) não disponibilizou aeronaves para transportar o oxigênio de Porto Velho (RO) até Manaus (AM). O meio mais rápido teria sido a hidrovia do rio Madeira. Mas o governo federal optou pela rodovia BR-319, que estava intrafegável naquela época do ano.

Essas são as conclusões de um artigo científico cujo teor foi conhecido em primeira mão pelo Brasil de Fato. O estudo foi produzido pelo biólogo Lucas Ferrante, mestre e doutor em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

“É impossível que o Ministério da Infraestrutura não soubesse que a rota escolhida era a pior de todas”, diz o autor, que comparou prazos e preços oferecidos por empresas de transporte do Amazonas.

O Ministério da Infraestrutura justificou que “a escolha da rota ocorreu porque é o período de chuvas na região e pelo tamanho da carga, o que levaria cerca de seis dias via Rio Madeira”. Não houve resposta da assessoria de Tarcísio de Freitas.

Entenda

A decisão equivocada foi tomada por Tarcísio, em conjunto com o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, considerado um “especialista em logística” pelo governo federal. Os gastos do translado estão sob sigilo de 100 anos, a pedido do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL).

O transporte do oxigênio foi feito no período de chuvas, quando o nível das águas sobem. O rio Madeira, um dos principais corredores logísticos da região Norte, estava no auge da navegabilidade, oferecendo transporte de cargas e passageiros.

Mas a preferência do governo federal foi pela BR-319, que tem metade dos seus 900 km de extensão sem asfalto. A rodovia é conhecida pelas péssimas condições de trafegabilidade, especialmente na estação chuvosa, quando atoleiros tomam conta da pista.

Comboio leva oxigênio a Manaus pela BR-319 / PRF

Nos últimos oito anos, Ferrante coordenou equipes responsáveis por quatro pesquisas científicas sobre os impactos socioambientais da BR-319, que atravessa 63 terras indígenas. Os resultados estão publicados em revistas acadêmicas de relevância mundial.

“O Ministério da Infraestrutura, sob o comando de Tarcísio, e o Ministério da Saúde, sob Pazuello, orquestraram a estratégia mais longa e mais cara para trazer oxigênio para Manaus, o que custou centenas de vidas”, lamenta o cientista, que vive na capital amazonense.

Viagem pela BR-319 durou três vezes mais do que o previsto

Seis caminhões com cilindros de oxigênio deixaram Porto Velho (RO) pouco antes do meio-dia no dia 20 de janeiro. Pelo Twitter, o Ministério da Infraestrutura anunciou que o trajeto demoraria cerca de 30 horas, mas durou três vezes mais. A carga só chegaria depois de quatro dias – ou 96 horas.

Segundo as informações levantadas por Ferrante junto a empresas de navegação, o percurso poderia ter sido feito em até 30 horas pelo rio Madeira, supondo que a embarcação fosse dotada de um motor potente (600 a 830 cavalos de força), dirigida por um piloto experiente e não fizesse paradas. O custo seria de R$ 195 mil reais.

Se quisesse economizar, o governo federal poderia contratar por R$ 150 mil uma embarcação com um motor menos potente (350 a 420 cavalos). Ainda assim, o trajeto demoraria menos do que demorou pela estrada, cerca de 75 horas.

“Lobby para grileiros a custa de vidas”

A reconstrução do trecho mais crítico da BR-319 foi uma das principais propostas da campanha de Bolsonaro em 2018. A promessa entusiasmou a classe empresarial do Amazonas, mas até hoje não saiu do papel.

Por isso, Ferrante avalia que o governo federal escolheu o pior trajeto de forma proposital, com objetivo de justificar a repavimentação da BR-319, projeto que produzirá impactos ambientais duradouros e enfrenta resistência de povos indígenas.

“O governo federal está legalizando terra griladas no eixo da rodovia BR-319. A rodovia atende apenas a grileiros e madeireiros ilegais, ou seja, o Ministério da Infraestrutura promoveu um lobby para justificar a rodovia às custas das vidas das pessoas em Manaus”, afirmou.

Bolsonaro usa BR-319 para justificar crise do oxigênio

De fato a demora na chegada do oxigênio em Manaus passou a ser amplamente utilizada por políticos bolsonaristas como justificativa para a reconstruir a BR-139 a toque de caixa, atropelando o direito de consulta dos povos indígenas e os estudos de impacto ambiental.

Durante a pré-campanha eleitoral deste ano, Bolsonaro publicou na redes sociais um vídeo de um ônibus atolado na BR-319. Em resposta a acusações de que teria se omitido no combate à pandemia, o presidente tentou atribuir a culpa às condições da estrada.

Em publicação no Facebook, o senador pelo Amazonas Plínio Valério (PSDB-AM), apoiador de Bolsonaro, repete o argumento utilizado por apoiadores do presidente: “Ainda estamos contando nossos mortos e centenas não teriam morrido por falta de oxigênio se a BR-319 fosse trafegável”.

“Criaram pânico que a crise de Manaus se deu por conta da falta de asfaltamento da BR-319. Era um motivo propício para passar por cima do direito dos povos indígenas e dos estudos ambientais. Nenhuma das comunidades indígenas teve direito à consulta prévia livre e informada como estabelece a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho”, ressalta Ferrante.

O pesquisador acrescenta que o suposto impacto da rodovia na crise do oxigênio em Manaus foi utilizada por uma decisão judicial para acelerar as audiências públicas dos estudos ambientais no meio da pandemia, quando a participação dos povos indígenas estava prejudicada.

“Nosso grupo de pesquisa deu o alerta de segunda onda de covid em um dos maiores periódicos científicos do mundo, a Nature Medicine, e avisamos os gestores públicos de todas as esferas, de municipal a federal. Tanto governo do estado do Amazonas como governo federal estavam sabendo que Manaus teria uma segunda onda e optaram por não fazer nada”, afirma o cientista.