Economista explica por que austeridade como alternativa para crises não deu certo em nenhum lugar do mundo.
Em momentos de crise econômica, apostar em uma política fiscal de austeridade é fazer o caminho oposto ao de crescimento produtivo, pleno emprego e distribuição de renda. A análise é da economista Esther Dweck, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), Dweck foi chefe da assessoria econômica e secretária de orçamento federal no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, atual Ministério da Economia.
Com o pretexto de tirar a economia do buraco, a política de corte de investimentos públicos intensifica as desigualdades sociais e, na prática, não deu certo em nenhum lugar do mundo, ressalta a professora. Além do discurso baseado em mitos, o projeto fiscal excludente beneficia a elite brasileira enquanto piora a qualidade de vida da população de baixa renda, explicita Dweck.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a economista analisa o que chama de “corrida para o fundo” com as reformas da Previdência e trabalhista e a Emenda Constitucional 95, que condiciona, por 20 anos, os investimentos públicos ao reajuste da inflação. Ela afirma que a Previdência pública tem papel central na estabilização da economia do país.
“A consequência final para o Brasil é uma piora no quadro econômico, social e até o fiscal, porque se gera um círculo vicioso de perda de emprego, de renda e de arrecadação”.
Para ela, é mais do que urgente discutir uma reforma tributária e um projeto de desenvolvimento inclusivo, já que os pobres pagam mais impostos no Brasil e são os penalizados com cortes na área social, como Saúde, Educação, Segurança Pública e Justiça.
Como forma de inverter a lógica de desenvolvimento e fazer o país voltar a crescer, Dweck apresenta alternativas no livro “Economia para poucos – Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil”, organizado junto com os economistas Pedro Rossi e Ana Luíza Matos de Oliveira.
“Estão tentando reduzir a capacidade da população de acessar direitos que ela tem garantido pela Constituição, e como consequência disso, então, há uma piora muito grande na qualidade de vida das pessoas”.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: Por que a austeridade, que pode aumentar a desigualdade social, é encarada como uma saída econômica?
Esther Dweck: Hoje em dia, no mundo, está se discutindo o papel da política fiscal. E é uma discussão parecida com a que se teve na década de 1940. Depois, a crise teve uma resolução, mas, o mundo, acabou passando por uma guerra mundial.
Justamente, a partir dali começou a se discutir que a política fiscal deveria ter um papel para resolver dois problemas. O primeiro, que a economia não garantia o emprego, não existia uma tendência a garantir o que a gente chama de pleno emprego. O segundo ponto era justamente a distribuição de renda.
A conclusão do debate daquele período foi que o sistema capitalista tende a gerar desigualdade e desemprego. Então, caberia ao governo contornar isso. O instrumento principal para isso seria a própria política fiscal.
Esse foi o entendimento da década de 1950, digamos assim, que durou até o final da década de 1970. E, infelizmente, entrou uma política que a gente chama de neoliberal, que quis desmontar toda essa lógica que foi pensada depois da crise de 1929 e da Segunda Guerra Mundial.
No fundo, o que a gente está vivendo hoje é esse mesmo debate.
Tem um grupo que quer reforçar essa ideia de que você tem que fazer uma política fiscal austera. Esse nome austeridade tem um problema que, pessoalmente, as pessoas não querem ser perdulárias, nem jogar dinheiro fora, obviamente. Mas, outra coisa, é você aplicar isso ao governo. E aí começam os problemas, principalmente em uma situação de crise como a gente está vivendo.
O governo tem, na política fiscal, dois instrumentos importantes. A arrecadação e os gastos. Nos gastos do governo, você tem basicamente três grandes caixinhas. Uma caixinha que é a provisão de serviços públicos, então a provisão de saúde, educação, justiça, segurança, cultura. E, obviamente, para isso, ele contrata gente para fazer isso, ele contrata professores, médicos, juízes, advogados, uma série de pessoas que são os funcionários públicos.
A provisão do bem público ou do serviço público para a sociedade depende de gente. Então, esse é um dos grandes gastos que o governo faz que, na maioria das vezes, é gratuito o acesso, seja educação, saúde, justiça.
Por outro lado, você tem as transferências que o governo faz. As transferências são, por exemplo, a Previdência, o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada [BPC], para os idosos com condições de baixa renda ou com deficiência física, o abono salarial, o Seguro Desemprego. Tem uma outra transferência que é o pagamento de juros. Também é uma transferência do governo para as famílias brasileiras, mas que vai para um grupo muito pequenininho de famílias.
O terceiro grande grupo seria os investimentos públicos. O governo constrói pontes, estradas, universidades, institutos federais. Para isso, ele contrata empresas. Então, obviamente, se o governo consegue contratar empresas, transferir renda para as famílias – que consomem, não via juros, mas via Previdência, via Bolsa Família –, que são famílias que vão pegar aquele dinheiro e gastar na economia. Então, ele consegue ativar a economia dessa forma.
Então, esse é o lado do governo para manter o crescimento econômico forte.
Tem um outro lado. Nesse processo de arrecadar e de gastar, o governo pode fazer isso de forma a melhorar a distribuição de renda.
Se ele tributar, o que a gente chama de uma tributação progressiva, que é cobrar mais de quem ganha mais, ele reduz a desigualdade de renda. E, se quando ele devolver, ele também devolver mais para quem tem menos, ele reduz bastante a desigualdade de renda.
Na Europa, é exatamente isso o que acontece. No livro “Economia Para Poucos”, a gente mostra que a diferença entre o Brasil, a América Latina e a Europa é, principalmente, via tributação, que lá eles tributam muito mais os mais ricos do que a gente aqui. E, com isso, eles conseguem reduzir as desigualdades. Então, a política fiscal pode ter esses dois papeis: o governo pode ativar a economia e o governo pode distribuir renda. Na visão de austeridade, o governo deixa de fazer essas duas coisas, e por dois motivos.
Um: porque a lógica da austeridade é cortar gastos. No Brasil, com a Emenda Constitucional 95 [do teto dos gastos], isso vai ser uma política pelos próximos 20 anos. Isso faz com que o governo deixe de gerar essa capacidade de crescimento.
Ele deixa de aumentar seu potencial de transferir renda para as famílias, de contratar empresas e, com isso, ele deixa de ativar a economia.
Por outro lado, como a gente mostra também no livro, a austeridade é sempre seletiva. Você sempre corta onde? Nos gastos sociais. Então, já se reduziram pela Emenda Constitucional 95 os mínimos constitucionais de saúde e educação.
Eles querem fazer uma grande reforma da Previdência para tirar dos mais pobres: 80% da reforma está em cima dos mais pobres no Brasil. Fora a própria discussão de mudança em várias outras regras de transferências de renda, e investimento público que praticamente acabou.
Então, a maneira como o governo está atuando vai concentrar renda e deixar a economia estagnada, como já está. Justamente o contrário do que deveriam fazer neste momento.
Neste cenário, que impactos trazem a privatização dos bancos públicos e sobre a importância de uma reforma tributária?
Na verdade, o que está acontecendo no Brasil, hoje, é que, além do governo não fazer seu papel, que seria ajudar na distribuição de renda e no crescimento econômico, por meio diretamente dos gastos públicos, ele também está tirando os outros instrumentos que ele tem, como é o caso dos bancos públicos e das estatais em geral.
No Brasil, quem financia os grandes investimentos de longo prazo para o setor privado – não é só para o setor público – são os bancos públicos. Então, se a gente olhar o BNDES, por exemplo, ele financia infraestrutura, o setor industrial, e até o setor agrícola.
Já a Caixa tem uma parte importante de financiamento de serviços públicos, como saneamento, mobilidade urbana e também residencial – crédito para as famílias comprarem suas casas.
O Banco do Brasil tem um papel central no crédito agrícola, que é para a produção de alimentos, inclusive também do agronegócio.
O que o governo está fazendo é, simplesmente, com que os bancos públicos deixem de ter esse papel de estimular o desenvolvimento. E, agora, com essa mudança que foi feita na PEC da Previdência, de tirar os recursos do BNDES, isso é gravíssimo a longo prazo.
O Brasil já tem uma das taxas de juros mais altas no mundo, para as empresas e para as famílias, o que significa que, se não tiver os bancos públicos garantindo um crédito razoável, a um custo razoável, você não vai ter mais financiamento do investimento aqui no Brasil. Isso compromete todo o nosso potencial de crescimento, o que é gravíssimo.
E se a gente parar para pensar, o Brasil teve um desenvolvimento industrial onde as estatais tiveram papel central.
Com o desenvolvimento de tecnologia, a gente, no caso do petróleo, na exploração de águas profundas, o Brasil, talvez, é o país que mais tem know how sobre isso.
Também em várias outras áreas, como o caso da Embraer, por exemplo, que era uma empresa estatal, o Brasil desenvolveu capacidade tecnológica em aviação, em construção de aviões, então tudo isso está se perdendo sendo vendido para fora.
Sobre a questão da reforma tributária, como isso pode ajudar?
Se a gente for parar para pensar quais reformas que o Brasil precisaria agora, não é a reforma da Previdência. Você pode até discutir uma reforma da Previdência, mas precisa ainda chegar a um consenso sobre o que se quer com a Previdência, o que não existe.
O que está proposto é um desmonte, não é uma reforma. Mas, a reforma que a gente mais precisa, no Brasil, é a tributária. A gente consegue devolver para a população em termos de serviços públicos e de transferências de renda, mas a gente arrecada muito mal.
A Receita Federal tem mostrado anualmente como os mais ricos no Brasil não pagam imposto de renda, praticamente. Quem paga é uma classe média e os mais pobres pagam muito imposto embutido nos preços de todos os produtos que a gente consome. Quem paga mais imposto no Brasil são os mais pobres. E isso acaba sendo um potencial enorme de concentração de renda e não de redistribuição de renda.
O que o Congresso diz que é a agenda prioritária da reforma tributária é só uma simplificação, que é juntar vários tributos, mas sem nenhuma mudança no grau de regressividade da carga de impostos.
Essa coisa de a carga ser muito pesada em cima dos mais pobres, era essa reforma que a gente precisava fazer. Mudar a composição, voltar a taxar lucros.
No Brasil, quem recebe lucro não paga imposto, quem recebe dividendo não paga imposto. A gente precisava inverter isso, retirar imposto sobre produtos e cobrar imposto dos mais ricos.
Você comentou que a gente não precisa de uma reforma da Previdência nesse modelo neste momento. Tem a Emenda Constitucional 95, a reforma trabalhista, então qual é o cenário daqui para frente? A qualidade de vida da população mais pobre tende a piorar?
Ela está bem comprometida se a gente não conseguir reverter, infelizmente. Justamente, a combinação desses três elementos — a Emenda Constitucional 95, a reforma da Previdência e a reforma trabalhista —- é um conjunto de retrocesso social muito forte no Brasil, e de retrocesso econômico.
Mas também de retrocesso fiscal. Pela legislação trabalhista, você está deixando de arrecadar imposto, porque as pessoas estão se tornando mais informais, contribuindo menos para a Previdência.
As reformas e a Emenda Constitucional 95, como eu expliquei, são um tiro no pé, porque fazem a economia ficar estagnada. E a reforma da Previdência é você tirar um colchão de proteção que a economia tinha.
Com a combinação dessas três reformas você deixa os trabalhadores totalmente desprotegidos em uma economia que não cresce. O desemprego se mantém alto, pessoas que deixam de procurar emprego porque não estão encontrando. Isso sem ter mais nenhum tipo de benefício que garanta sua sobrevivência.
A consequência final para o Brasil é uma piora no quadro econômico, social e até o fiscal, porque se gera um círculo vicioso de perda de emprego, de renda e de arrecadação.
A quem interessa essa política e quem ela beneficia? Como levar esse debate para o interesse público e para que as pessoas percebam o que está acontecendo e como essa política está impactando a vida delas?
Para mim, é muito claro que é uma reação ao pacto social feito na Constituição de 1988, que era um pacto redistributivo, de construção de um Estado de bem-estar social. A gente estava caminhando para isso, com essa noção de que o bem-estar da população é uma obrigação do governo. E o bem-estar não é simplesmente a pessoa sobreviver, é ela viver com qualidade. Então, eu acho que esse é o ponto central. A quem interessa então?
Quando a gente conseguiu mostrar que esses instrumentos no Brasil poderiam ter um potencial enorme de redistribuição de renda, quando a gente percebeu que era possível fazer uma mediação na distribuição de renda e o governo interferir no que a gente chama de conflito distributivo a favor dos mais pobres e dos trabalhadores, houve uma reação da classe que perde, ou que se sente ganhando menos.
Qual é a lógica disso? Um dos economistas que mais falou sobre isso, da década de 1940, ele escreveu um texto chamado “Aspectos políticos do pleno emprego”. Ele falava que, toda vez, que o governo garanta que o desemprego fique baixo, redistribua renda e acirre o conflito distributivo entre trabalhadores e capitalistas, vai ter uma reação do outro lado. E a reação vai vir em cima da política fiscal, justamente, porque a política fiscal pode ter o papel de controlar o nível de emprego e pode ter o papel de redistribuir renda.
A única parte que não está controlada pela Emenda Constitucional 95 é o pagamento de juros, todo o resto — investimentos, transferências sociais, provisão de bens públicos — está restrito. O pagamento de juros, não. E aí, obviamente, essa é uma pequena parte da população que ganha com os juros e para o qual não foi imposto nenhum limite e nenhum tipo de restrição.
Na verdade, isso é uma reação da elite brasileira para desmontar os mecanismos de transferência de renda e garantia de emprego no Brasil. E, infelizmente, como é que a gente explicar isso para a população? Essa é um pouco a ideia do livro mesmo, o que a gente chamou de “Economia para Poucos – Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil”.
A gente também apresenta alternativas, mas, a lógica é mostrar para a população que um debate que parece macroeconômico, e que muitas vezes as pessoas também tentam traduzir em uma coisa próxima das famílias de falar “não, o Estado não pode gastar mais do que ganha, igual uma dona de casa”.
E mostramos como isso é absurdo, do ponto de vista da lógica econômica, e como, na verdade, é uma tentativa de maquiar um debate, não as consequências efetivas para a população dessa política.
Na prática, é a redução das escolas, a piora na qualidade, falta de remédios, falta de vacina, falta de posto de saúde, falta, inclusive, de Justiça para as pessoas, de ela ter acesso à Justiça do Trabalho, por exemplo
Estão tentando reduzir a capacidade da população de acessar direitos que ela tem garantido pela Constituição, e como consequência disso, então, há uma piora muito grande na qualidade de vida das pessoas.
Se a gente conseguir traduzir como esses cortes, como essa política, na verdade, vai afetar o dia a dia das pessoas, a gente consegue mobilizar mais as pessoas para esse debate. Mas, se ficar só um debate macroeconômico e muito restrito aos economistas, aí é mais difícil.
Sobre as alternativas, tem outros elementos que você citaria nesse sentido?
Além de a gente barrar tudo isso, temos que repensar um projeto de desenvolvimento, que tem que ter duas pernas. No Brasil, a gente teve, em algum momento, uma perna produtiva muito forte e, depois, em outro momento, uma perna social muito forte.
Precisamos ter um projeto social de desenvolvimento em que as próprias demandas sociais da sociedade gerem motivos e capacidade de desenvolvimento produtivo relevante.
É isso o que a gente aponta ao final do livro, e no Projeto Brasil Popular a gente também mostra.
Recentemente, no livro que a Cepal organizou que são “Alternativas para o Brasil”, com vários autores, tem um texto meu e do Pedro Rossi também sobre como a gente pode pensar um projeto de desenvolvimento produtivo e social combinado para resolver as grandes desigualdades que existem no Brasil.
Você acha que estamos longe de chegar a essa combinação de duas pernas?
Muito longe, neste momento, infelizmente.
Fonte:Emilly Dulce/Brasil de Fato