Esse dado, fornecido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, mostra que antes de exigir sacrifícios dos trabalhadores o governo deveria cobrar contribuição para o ajuste fiscal dos que estão no topo da pirâmide de riqueza.
A PEC 06/2019 encaminhada pelo governo Bolsonaro ao Congresso Nacional apresenta justificativa enviesada, uma vez que ignora um conjunto de elementos que determinam a capacidade de manter a Seguridade Social, uma das políticas públicas mais antigas e que já passou por inúmeros ajustes se adequando ao perfil populacional. A proposta é fundamentada em dados contestáveis, e um deles refere-se à questão relativa à dívida das empresas junto à previdência. Essa dívida totaliza 1,055 trilhão de reais.
O equilíbrio financeiro da Seguridade Social não requer a criação de novos impostos e tributos, no curto prazo. A retomada da economia com a recuperação dos empregos e o cumprimento dos artigos 194 e 195 da Constituição Federal (CF) de 1988 – o que nunca ocorreu desde 1989 – seria a decisivo.
Apenas em 2015, deixou-se de contabilizar nas contas da Previdência Social, como “contribuição do governo”, a arrecadação proveniente da Cofins (R$ 202 bilhões), da CSLL (R$ 61 bilhões) e do PIS-Pasep (R$ 53 bilhões). Nesse mesmo ano, a Seguridade Social também deixou de contar com R$ 157 bilhões por conta das desonerações tributárias (incluída a isenção da contribuição patronal para a Previdência) e com R$ 61 bilhões por conta das Desvinculações das Receitas da União (DRU). De 2009 a 2015 o resultado da Previdência (RGPS) sempre foi superavitário.
Dados recentes, fornecidos pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), indicam que as dívidas de empresas com a seguridade social atingiram, em novembro de 2018, o total de R$ 1,055 trilhão. Esse total é composto por: R$ 484,3 bilhões relativos a débitos de contribuições previdenciárias dos empregadores e dos segurados, contribuições devidas a terceiros, assim entendidos outras entidades e fundos, e a contribuição para o salário-educação; R$ 228,6 bilhões são débitos de PIS e Contribuição Social sobre o lucro líquido (CSLL); e 342,1 bilhões referem-se ao não repasse da Contribuição para o financiamento da seguridade social (Cofins).
A PGFN informou, ainda, que no montante dos débitos de PIS, CSLL e Cofins foram consideradas apenas empresas que devem mais de 150 mil, portanto, devendo ser um valor total ainda maior.
As dívidas junto à Previdência recebem uma classificação pela PGFN quanto ao tipo de inscrição do débito, conforme Tabela 1. Verifica-se que 73,3% do débito está classificado “em cobrança”, o que, de acordo com a PGFN, indica que o débito está em situação irregular ,e a PGFN está buscando patrimônio do devedor para saldá-lo; e 17,5% do total é classificado como “Benefício fiscal”, que trata de débito parcelado. Nesta situação, o pagamento é mais ou menos moroso, a depender da quantidade de parcelas concedidas pela lei que instituiu o programa de parcelamento.
Não obstante, ao analisar os maiores devedores com a classificação “em cobrança”, verificam-se empresas ativas, conhecidas e que registram lucros significativos nos últimos anos, caso de bancos como o Itaú, e/ou empresas de investimentos como a J&F Investimentos, que possui em seu portfólio empresas como a JBS (líder em processamento animal), Flora (líder em segmentos de limpeza doméstica e higiene pessoal), Eldorado (grande empresa de celulose) e o Banco Original (100% digital) – todas empresas que vêm registrando lucro no último período.
Há, pelo menos, nessa lista de devedores à previdência, mais de 200 empresas de investimentos. Entre as empresas com dívidas classificadas como “Benefício fiscal” está a Havan (lojas de departamento), com crescimento importante de faturamento nos últimos anos, e chama atenção também o fato de o seu proprietário, Luciano Hang, ter passado a integrar a lista de bilionários da revista Forbes na edição de 2019.
O direito de discutir uma dívida ou questionar é assegurado constitucionalmente, e muitas vezes se estende por décadas. E há a dificuldade em cobrar aqueles que praticam fraude ou ocultam patrimônio para se livrar de suas obrigações fiscais. Esse é mais um dos gargalos do sistema tributário brasileiro, que potencializa o quadro de devedores, mas esse é um argumento que corrobora a importância e urgência de uma Reforma Tributária no país (que não é a mesma coisa que simplificação tributária).
Por outro lado, o governo, ao defender a PEC 6/2019, justifica que uma ação para enfrentar esses desafios foi o envio do projeto de Lei 1646/19[1] ao Congresso em março. Contudo, o projeto tem muitas limitações[2], pois não acaba com o Refis e indica acabar com débitos do agronegócio, por exemplo – mas entre os deputados e senadores eleitos em 2018, 15 parlamentares, da bancada ruralista, estão devendo cerca de 90% do montante de débitos desse setor. O que deixa muitas dúvidas sobre a efetividade desse projeto, podendo servir apenas como um argumento vazio, sendo necessário algo mais detalhado e abrangente.
O Refis, no Brasil, que nos últimos 18 anos já concedeu quase 40 programas, conforme divulgado pela Secretaria da Receita Federal, prevê parcelamentos para as dívidas das empresas, que variam de 60 a 180 meses, tendo alguns até sem prazo definido, enquanto a média, em outros países é de 12 ou 24 meses[3]. O Refis brasileiro é um incentivo para a geração de débitos e funciona como um financiamento mais acessível monetariamente. Nesse aspecto, a PEC prevê limitar por 5 anos (60 meses) esses programas, o que não parece razoável com base na cultura brasileira e as experiências internacionais.
O governo reitera que a cobrança dos devedores não soluciona a questão da previdência, porque se trata de estoque e o problema da previdência é de fluxo. Nesse aspecto, a cobrança e ações que inibam o incremento de novos e maiores devedores ajudarão a compor as soluções de longo prazo e solucionam as de curto prazo para que haja o planejamento e discussão adequada pela sociedade na mudança de uma política pública centenária, como a da previdência. A classe trabalhadora sabe que não é isso que vai resolver. A classe trabalhadora quer trabalhar, mas não consegue emprego, quer um emprego formal, mas acaba dependendo da informalidade para sobreviver.
Por exemplo, no mercado de trabalho brasileiro, em 2018, de acordo com Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar/IBGE, registrou-se 92 milhões ocupados. Sendo que 33,6 milhões não contribuíram para a previdência social. Portanto, quase 37% da população ocupada. Repare que não se falou em desempregados (que seriam mais 12 milhões de pessoas), somente em ocupados. Em um caso hipotético, se todos os ocupados pudessem estar devidamente registrados, com contribuição para a previdência com base em 1 salário mínimo, essa medida resultaria em aproximadamente R$ 134 bilhões por ano para a previdência. E, nesse caso, não se trata de estoque e, sim, de fluxo. A cobrança adequada dos devedores pode dar um pouco mais de fôlego para a elaboração e implementação das políticas de impacto no mercado de trabalho.
Para o trabalhador importa que ele paga os tributos que financiam a seguridade social, através do seu contracheque, recebendo uma remuneração “menor” em função do pagamento da cota patronal que o empregador deve pagar (sim, porque o empregador inclui como custo do trabalho) diretamente ou quando adquire produtos e/ou serviços, uma vez que eles estão embutidos nos preços – contrariando o previsto na CF art.195 que diz que cabe às empresas (e não aos clientes delas) o repasse de recursos cobrados sobre seu faturamento bruto.
Um exemplo é a conta de luz, na qual o trabalhador vê destacado o imposto para a seguridade. Muitas empresas, por sua vez, não repassam essas contribuições por entendimentos diversos, e, para o trabalhador brasileiro, restaria, a pedido do governo, um esforço que significa prolongar significativamente seu tempo de contribuição, sem a garantia de conseguir um trabalho, e reduzir substancialmente o valor da sua aposentadoria.
Portanto, não parece correto exigir dos trabalhadores tais sacrifícios, enquanto os verdadeiramente ricos e privilegiados na sociedade, os que estão no topo da pirâmide de renda e riqueza, são poupados de qualquer contribuição para o ajuste fiscal.
Fonte:Anelise Manganelli e Daniela Sandi/Brasil Debate