Evento em São Paulo reafirma apoio a Lula e união do campo progressista, mas defende fortalecimento do processo político para evitar novas rupturas.
Às 22h45, Renato Braz começa a cantar. Ele interpretaria duas canções representativas do período da ditadura e uma que já espelha tempos de mais esperança no futuro, apesar de composta ainda no período repressivo: Cálice (1973), Pesadelo (1972) e Coração Civil (1981). Uma síntese em forma de música ao final da oitava edição da Jornada pela Democracia, que reuniu na noite desta segunda-feira (14) artistas, religiosos, comunicadores, acadêmicos e líderes de movimentos sociais para reafirmar a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e apontar riscos ao processo político, das fake news às permanentes tentações autoritárias. Apenas três anos separam a primeira e a oitava edições da jornada, período historicamente curto, mas suficiente para que o país sofresse uma reviravolta.
“Não são tempos fáceis para quem é jovem”, disse, logo no início, a vice-presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), Jessy Daiane, militante do Levante Popular da Juventude, falando de forças que “estão saindo da escuridão”. Na primeira edição da Jornada pela Democracia, em 12 de abril de 2015, uma das discussões era justamente sobre os riscos de um avanço conservador. Já se organizavam atos contra o governo Dilma Rousseff, eleita para um segundo mandato. Para o organizador do evento, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), é necessário “retomar um ciclo de direitos” e a pessoa que pode “reconciliar o Brasil” é Lula: “Ele é o alvo maior desse golpe”.
Normalmente refratário a declarações públicas, o escritor Raduan Nassar, após alguma insistência, subiu ao palco do auditório no Sindicato dos Engenheiros de São Paulo, na região central da cidade, para manifestar preocupação. “Eu ando pensando o seguinte: que quem defende o Estado democrático de direito está correndo o risco de perder a sua liberdade”.
Minutos depois, pediu a palavra novamente: “Levando em conta as arbitrariedades do Ministério Público, mais as arbitrariedades do Supremo Tribunal Federal, como se isso não bastasse, as forças mais poderosas do país estão agora tomando as decisões em relação à política. Seja como for, acho que Lula está presente. Seja o que for, Lula livre, Lula presidente”.
A jornalista e analista Maria Inês Nassif ponderou sobre a importância de se pensar no futuro político do Brasil. “Estamos nos deixando muito nos levar pelas eleições de outubro sem saber o que será de nós até lá. Temos de preparar nossa unidade, nosso discurso e nossas forças para o que for. Não basta ganhar eleição. O que temos de fazer é radicalizar a democracia e torná-la realidade”, afirmou.
Direita dividida
Representante do Psol em um evento marcantemente petista, Gilberto Maringoni destacou exatamente a unidade entre forças de esquerda. “Dos 15 candidatos (ou pré-candidatos à Presidência), 11 apoiaram o golpe. É a direita que está dividida, e nós estamos fazendo uma campanha convergente”, afirmou o também professor e ex-candidato a governador.
A questão é que as intenções majoritárias de voto em Lula, conforme demonstrou nova pesquisa, divulgada ontem, ainda não se materializaram em apoio nas ruas. É preciso, diz, “transformar intenções de voto em intenção de volta, Lula”, para garantir o direito de participação do ex-presidente.
Metade do golpe consiste em impedir a participação eleitoral de Lula, avalia Dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo que comandou ato ecumênico em São Bernardo no dia 7 de abril, quando o ex-presidente deixou o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC rumo a Curitiba. Ele destacou a influência do poder econômico, com o trocadilho econômico-religioso “capetalismo”.
Em 1964, também se derrubou um governo (João Goulart), por influência externa, para barrar as chamadas reformas de base. “Nunca houve esse perigo do comunismo no Brasil, como queriam alardear”, disse Dom Angélico, defendendo uma “mensagem de paz e amor em tempos árduos” como os atuais. Para ele, a prisão de Lula “é um desserviço terrível à causa do povo brasileiro”.
Para o economista Guilherme Mello, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é preciso combater algumas fake news (notícias falsas) que ainda circulam. Uma tenta “naturalizar” a exclusão de Lula do processo eleitoral. Outra, também comum, busca “vender” a ideia de que após o impeachment todos os problemas da economia estariam resolvidos.
As várias faces do impeachment que derrubou são discutidas por autores dos dois volumes do livro A Enciclopédia do Golpe e por um grupo de cineastas, incluindo Maria Augusta (Guta) Ramos, diretora do documentário O Processo, que entrará em cartaz na próxima quinta-feira (17) e teve o trailer exibido ontem. O evento também teve homenagens à vereadora Marielle Franco (sua companheira, Monica Benício, gravou um vídeo) e ao economista Paul Singer.
A jornalista Eleonora de Lucena, representante do Projeto Brasil Nação, citou a notícia divulgada ontem de que a mortalidade infantil voltou a crescer no país, depois de 13 anos. “Isso é trágico. A gente estava vendo uma curva descendente, constante”, comentou, lamentando o corte de programas sociais. “Esse é o golpe da destruição.”
Plano B
Coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP) e líder da Frente Brasil Popular, Raimundo Bonfim ressaltou a importância de candidaturas como as de Manuela d´Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos (Psol), mas acrescentou que “neste momento não existe outra saída a não ser lutarmos por Lula livre, Lula presidente”. Pouco depois, João Paulo Rodrigues, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) reforçou esse posicionamento, relatando reunião da direção nacional na semana passada: “Reafirmamos o compromisso de que o candidato do MST a presidente da República é o Lula. E que plano B é lutar pra valer”.
Segundo ele, “o lado de lá” enfrenta problemas para se viabilizar no processo eleitoral. “Não têm voto, não se acertaram com o candidato deles. Do lado de cá, temos candidato e temos voto.”
Prestes a lançar o livro O voto do brasileiro, o sociólogo e cientista político Alberto Carlos Almeida acredita em uma nova eleição polarizada por PT e PSDB. Sem falar em nomes, ele avaliou que o candidato petista tende a chegar ao segundo turno impulsionado pela região Nordeste, que concentra 27% dos votos válidos, pouco mais que os 23% de São Paulo. Segundo ele, o eleitorado se inclina a votar no candidato “que estiver menos associado com o governo”.
“Hoje ninguém duvida que é um golpe. Essa narrativa nós ganhamos”, disse o professor e advogado Wilson Ramos Filho, um dos organizadores da Enciclopédia. Mas é preciso se preocupar com o que, daqui a alguns anos, contarão os livros de História. Há um terceiro volume em preparação, com tema específico: “Este golpe não existiria sem o Poder Judiciário. Apenas 11 pessoas comprometeram o futuro de 200 milhões de brasileiros”.
Onze é o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, mas Ramos também falou em “juizecos de primeiro grau”. Para ele, é preciso que o país “saiba quem são os verdadeiros destruidores da nação”.
Outra coordenadora da obra, a advogada Maria Luiza Tonelli fez referência ao “triplex do golpe”, composto do Congresso, Judiciário e mídia. “Temos a hegemonia do Poder Judiciário solapando a soberania popular. Que país é este em que Lula está preso e Paulo Preto está solto?”, afirmou, citando o engenheiro Paulo Vieira de Souza, ex-diretor da Dersa em São Paulo e apontado como operador do PSDB.
O professor Laurindo Lalo Leal Filho destacou a importância de trabalhos como livros e filmes, além de veículos de comunicação alternativos, para garantir uma versão mais realista do processo de impeachment e suas consequências. “Seria muito ruim se daqui a alguns anos o pesquisador ficasse refém da mídia oficial. São documentos que nos ajudarão nestes dias difíceis a entender o golpe e a continuar lutando.”
Guta Fernandes disse esperar que o filme O Processo “contribua para a nossa luta em favor da democracia e contra esse golpe nefasto”. Ao lado dela, as também diretoras Tata Amaral e Laís Bodanzki falaram sobre as greves dos metalúrgicos do ABC, o processo de anistia, as fragilidades da democracia brasileira e comunicação alternativa. “Nosso exercício é pegar informação e passar adiante”, afirmou Laís.
O ator e diretor Tadeu di Pietro lembrou da conquista do reconhecimento profissional do artistas, em 1978, em movimento liderado por Lélia Abramo, direito agora ameaçado por uma ação no Supremo Tribunal Federal. E retomará o tema da informação. “Quando a gente fala em democracia, não pode esquecer da comunicação”, afirmou. Segundo ele, é preciso “construir um projeto de comunicação que vá além da bolha”. A resistência não pode se limitar ao Facebook e às redes sociais, mas precisa atingir inclusive pessoas que “bateram panelas” e foram à Avenida Paulista contra o governo Dilma.
Há pouco mais de 25 anos administrando um pequeno café no bairro paulistano da Bela Vista, o popular Bixiga, Segismundo Bruno resiste, sem perder a tranquilidade de quem o conhece no balcão do Sabelucha, perto da igreja de Nossa Senhora Achiropita. “É um local de batalha”, disse Bruno, que enfrentou antipatias e hostilidades por manifestar seu apoio ao PT, Lula e Dilma.
“Já passei por muitas coisas, mas não me importo, porque a gente só tem argumento verdadeiro”, afirmou Bruno. “Nós não estamos sozinhos.”
Fonte:Vitor Nuzzi/RBA