Aprovada em 2017, minirreforma eleitoral irá drenar recursos financeiros e o próprio debate democrático para plataformas cuja transparência é questionada.
O cenário de monopólio digital na internet brasileira, dominada pelas plataformas Facebook e Google, será ainda maior nas eleições de 2018 graças à nova lei eleitoral, a 13.488/2017. Enquanto as mudanças na legislação chamavam a atenção para os aspectos relacionados ao financiamento ou ao período de campanha, passaram quase despercebidos trechos que estimulam a concentração de recursos financeiros nos gigantes da internet, conforme evidencia a pesquisa “Concentração e Diversidade na Internet: um estudo da camada de aplicações e conteúdos”.
Se por um lado foi mantida a proibição de propaganda eleitoral em sites e blogs, por meio de banners, por exemplo, o artigo 26 da lei autoriza o “impulsionamento de conteúdos”, termo diretamente relacionado a publicidade no Facebook e Instagram – este último também pertencente ao Facebook. O mesmo artigo inclui como forma de impulsionamento “a priorização paga de conteúdos resultantes de aplicações de busca na internet”, ou seja, beneficia diretamente o mecanismo de pesquisa do Google – ainda que existam outros sites de busca, como Yahoo e Bing, porém pouco relevantes na internet.
Na opinião do sociólogo Sérgio Amadeu, membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), os legisladores fizeram algo “nefasto” ao aumentar a força do poder econômico e a concentração de tráfego na internet em uma plataforma privada. “Como é que você proíbe banners e propaganda paga em blogs e beneficia uma empresa estrangeira? O dinheiro da campanha eleitoral vai ser mais ainda utilizado por essa plataforma, vai privilegiar a atenção nela e concentrar ainda mais o tráfego numa esfera pública que não é pública, é um jardim murado privado”, afirma Amadeu.
Embora a nova lei eleitoral não cite expressamente o Google como site de pesquisa e nem o Facebook como rede social, o professor da UFABC destaca que o termo “impulsionamento de conteúdo” é muito utilizado no mercado publicitário e pela própria plataforma Facebook para falar de venda e distribuição de postagens, além da visualização de postagens na timeline dos usuários. “Você está incentivando que o candidato que vai fazer campanha na internet, e todo candidato vai ter que fazer campanha na internet, gaste para fazer sua campanha andar”, explica.
Sérgio Amadeu pondera que anteriormente havia a ideia de que os próprios apoiadores dos candidatos auxiliariam com postagens a divulgação da campanha. Para ele, essa possibilidade deve ser bloqueada pelo próprio Facebook por meio dos algoritmos, como forma de forçar o candidato a fazer postagens pagas.
Ao lembrar a origem norte-americana do Facebook, Amadeu é irônico com a recente declaração do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luiz Fux, ao dizer estar “preocupado” com a influência estrangeira nas eleições de outubro. “Esteja mesmo, porque a lei eleitoral brasileira privilegia mecanismos de busca, e não tem nenhum (site de busca) brasileiro, e a rede social Facebook também é estrangeira. Então estamos numa situação complicadíssima.”
Para o professor da UFABC, uma possível alternativa para minimizar o problema é solicitar à Justiça Eleitoral que estabeleça uma norma obrigando qualquer postagem no Facebook ou compra de resultado no Google vir acompanhada do valor gasto naquela publicidade. “Assim as pessoas vão ver que estão gastando muito para fazer o convencimento delas.”
Democracia em risco
Coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (Fndc), Renata Mielli também critica a decisão dos congressistas de canalizar recursos para o Facebook e Google, plataformas conhecidas pela ausência de transparência em seu funcionamento e que terão o poder de concentrar a circulação da propaganda e do debate das eleições na internet. Segundo Renata, os artigos da nova lei eleitoral são inclusive contraditórios com as preocupações do TSE relacionadas às chamadas fake news.
“Ao mesmo tempo em que dizem que é preciso combater isto (fake news), estão permitindo direcionar recursos para impulsionar publicidade em plataformas que não se sabe quem vai receber, qual o critério, se a seleção da pessoa que vai receber aquela informação é baseada na coleta de dados pessoais para alimentar determinada bolha. Estamos transferindo para o Facebook o papel de mediação da distribuição de todo o debate político e eleitoral, algo que pode ser gravíssimo para o próprio resultado das eleições e a democracia, muito mais grave do que o problema das fake news”, analisa Renata Mielli.
O tema “democracia x internet” tem também estimulado a reflexão da filósofa e professora da Universidade de São Paulo (USP) Marilena Chaui. Em abril, durante seminário de comunicação promovido pelo PT, em São Paulo, ela analisou a atual transformação da forma de comunicar a partir da tecnologia digital, que integra num único sistema de distribuição e recepção a televisão, a internet, o cinema, a telefonia de voz, imagem e redes de dados.
“Não causa espanto que companhias de produtos eletrônicos e empresas de telecomunicações estejam em disputa para controlar esse negócio de ponta a ponta e somente grupos poderosíssimos, resultantes de alianças entre empresas de comunicação de massa, operadoras de comunicação, provedores de serviços de internet e empresas de computadores estarão em posição de dominar os recursos econômicos e políticos necessários para a difusão da multimídia”, diagnosticou.
Para a filósofa, do ponto de vista da democracia, a questão que se impõe é o controle da “massa cósmica de informações”, que acaba por gerir as informações que controlam a sociedade. Marilena Chaui define que, ideologicamente, o poder exercido pela mídia ocorre por meio da denominada “ideologia da competência”, onde não é qualquer um que pode, em qualquer lugar e em qualquer ocasião, dizer qualquer coisa a qualquer outro. “O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como predetermina os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir e, finalmente, define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido”, explicou.
Na análise da professora da USP, a ideologia da competência se opõe à democracia porque fere a igualdade e a liberdade ao instituir a divisão social entre os competentes, “que sabem e mandam”, e os incompetentes, que “executam e obedecem”. É nesse ambiente que Chaui provoca a reflexão se a internet revela mesmo um novo campo democrático. Em sua opinião, considerando o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa, a contradição que se coloca é que a internet e as redes sociais podem ser consideradas uma ação democratizadora, do ponto de vista da ação política, porém, seus usuários não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que usam.
“Sob o aspecto maravilhosamente criativo e anárquico das redes sociais em ação política, ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do planeta”, alerta Marilena Chaui.
Regulação
O debate em torno da regulação da internet entra numa nova fase e ganha força em diversos países do mundo, principalmente após o escândalo de vazamento de dados privados de milhões de usuários do Facebook para a empresa de consultoria política Cambridge Analytics.
“Essa nova fase tem tudo a ver com a ideia de concentração, com algumas poucas empresas tendo a capacidade de definir não só questões da vida on-line das pessoas, mas também da vida off-line. Essas empresas viraram grandes elefantes, andando soltas por aí, batendo em tudo”, pondera Marina Pita, integrante do coletivo Intervozes e uma das autoras da pesquisa “Concentração e Diversidade na Internet: um estudo da camada de aplicações e conteúdos”.
Ela analisa que essa nova fase, em outros países, está tendo um tempo de maturação que não houve no Brasil, considerando que o país aprovou recentemente a lei do Marco Civil da Internet, estabelecendo, por exemplo, que grandes plataformas como Facebook não são responsáveis pelo conteúdo dos usuários.
No Brasil, Marina Pita avalia que as propostas de regulação da internet estão centradas na retirada de conteúdo, seja material de fato danoso, com violação de direitos, mas também outros com interesses políticos. “Estamos falando numa conjuntura de Lava Jato e isso não pode ser ignorado. Temos que olhar para essas propostas de legislações e entender quais interesses estão ali. Estamos querendo de fato garantir que os direitos humanos sejam respeitados na plataforma e que as pessoas se sintam protegidas? Não, o que estamos vendo é a retirada de conteúdo para proteger pessoas poderosas”, afirma. “Se a sociedade civil não fizer uma proposta de regulação que não venha da cabeça dos políticos, teremos uma regulação na camada de conteúdo que pode ser nociva à liberdade de expressão e ao acesso à informação.”
Em outros países, a integrante do Intervozes explica que as novas legislações estão exercendo a regulação por meio da maior exigência de transparência das plataformas, cobrando das empresas que informem à sociedade sobre como tratam os conteúdos. Há exemplos em que se define como as plataformas devem agir em casos de incitação ao ódio ou violência, cobrando multa em casos de omissão. Na França, a atual proposta é uma espécie de co-regulação, com um órgão que permanentemente acompanhe as regras e faça avaliações, um modo mais flexível e de acordo com a constante evolução tecnológica.
Se trazida para o Brasil ideia semelhante, Marina Pita vê como problema a definição de qual órgão público faria tal controle. “Estamos num processo em que se cobra o enxugamento do Estado, então como criar um órgão que vai acompanhar um setor econômico, que vai definir regras, que tem um desafio tecnológico muito grande, se não se consegue criar um órgão no Estado?”, questiona.
Para ela, a co-regulação só funciona se houver o Estado presente, mas na atual conjuntura brasileira isto seria difícil. “Nosso desafio é ainda maior. Não é só dizer como queremos fazer a regulação, mas como a gente implementa isto numa conjuntura de Estado mínimo”, diz, ponderando que as agências reguladoras que já existem têm estrutura defasada e orçamento reduzido.
Fonte:Luciano Velleda/RBA