Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Para Gonzalo Vecina, ordem de grupos a serem imunizados deveria ser revista: “Quem mais morre aqui são os pobres”.

A ordem de imunização contra a covid-19 proposta pelo governo Bolsonaro, na opinião do médico sanitarista Gonzalo Vecina, está em descompasso com a realidade do Brasil.

O governo federal determinou que trabalhadores da saúde, idosos a partir de 75 anos e indígenas aldeados integrem o grupo 1 entre as populações prioritárias, ou seja, serão os primeiros a receber a vacina.

Idosos dos 60 aos 74 anos são o grupo 2 e pessoas com comorbidades estão classificadas no grupo 3.

Segundo a gestão Bolsonaro, 49,6 milhões de pessoas deverão ser vacinadas nessas três primeiras etapas.

Para o ex-presidente da Anvisa, entretanto, a prioridade prevista do Plano Nacional de Imunização (PNI) é inadequada e deveria passar por novas modificações.

“A ordem de vacinação é copiada e colada do modelo americano e europeu de vacinação. Só que a sociedade brasileira não é a de um país acima da linha do Equador. Somos uma sociedade muito desigual, a oitava maior desigualdade do mundo. Vacinar com as mesmas regras desses países é de uma idiotice muito grande. Quem mais morre aqui são os pobres”, explica Vecina.

Ele justifica o argumento acrescentando que, ainda que os mais velhos ocupem a maior taxa de mortalidade, conseguem permanecer em isolamento social dentro de suas casas.

“E os adultos jovens que têm que buscar comida, trabalhar, não ficam. São esses que vão ter a doença. Nós tínhamos que revisitar essa lista [de prioridade]. Quem está morrendo mais são os pobres, negros e analfabetos. E estamos fazendo outro plano de vacinação”, critica o sanitarista.

Na opinião de Vecina, além dos profissionais de saúde, quilombolas, indígenas e a população de rua deveriam ser os primeiros a ser vacinados, assim como trabalhadores de outros setores essenciais a partir de uma escala de exposição.

Entre eles os trabalhadores do transporte coletivo, da segurança pública e professores da educação básica. Embora esses profissionais estejam entre os grupos prioritários do PNI, não são contemplados pelas três primeiras fases e ainda não há definição para o início da imunização de uma quarta ou quinta etapa.

De acordo com o governo, o planejamento depende da aprovação e disponibilidade das vacinas.

“Essa é uma questão que teríamos que obrigatoriamente que revisitar. O Ministério da Saúde não tem competência determinar quem deve ser vacinado. Tem que chamar os especialistas, as pessoas que entendem disso, para que essas pessoas tomem a decisão e proponham uma regra para a sociedade, que seja mais consentânea com nossa realidade”.

A previsão do governo federal é que a vacinação dos brasileiros seja concluída em 16 meses, sendo os quatro primeiros apenas para os grupos prioritários e os 12 meses restantes para a população geral.

Confira a segunda parte da entrevista com Gonzalo Vecina.

Brasil de Fato – Qual sua opinião sobre os dados de eficácia dos imunizantes desenvolvidos aqui no Brasil? Quais são os critérios, há alguma vacina mais apropriada?

Gonzalo Vecina – A taxa de eficácia precisa estar acima de 50%. Embora tenhamos vacina como a da gripe, que geralmente tem 3 ou 4 componentes, um deles pode dar uma eficácia abaixo de 50%. Mas nem por isso deixamos de aplicá-la porque ela consegue reduzir mortes.

O grande problema que estamos vivendo é ter vacina. E isso coloca em segundo plano qual vacina. Não temos condição de escolher. Em grande medida pela inação do governo federal, só temos duas vacinas na mão hoje.

E temos que agradecer a existência dessas duas vacinas às escolhas que Fiocruz e Butantan fizeram. Se não fossem Butantan e Fiocruz terem ido atrás, não teríamos nenhuma vacina. Nenhuma fabricante tem condição de aportar ao Brasil as doses necessárias para imunização.

Somos 210 milhões de habitantes e temos uma população a ser coberta pela vacina, acima de 18 anos, para a qual essas vacinas foram testadas, na ordem de 160 milhões de pessoas. Como as vacinas são de duas doses, estamos falando de 320 milhões de doses.

O máximo que essas empresas chegaram a oferecer para o Brasil em curto espaço de tempo é algumas centenas de milhares, não chega a milhão. Quando vimos vários países que saíram vacinando, como o Chile, foi um processo iniciado com 3 mil doses para uma população de 18 milhões de habitantes.

Temos que olhar com muito cuidado esses passos. Não fosse a Fiocruz e o Butantan, não teríamos vacina.

A eficácia da vacina da Fiocruz está em torno de 70%. A do Butantan, que foi anunciada de 78%, é para os grupos que no processo de pesquisa de fase 3 tiveram a doença sintomática e mais grave.

Então se pega a amostra de dez mil pacientes. Metade tomou placebo e metade tomou vacina. E aí se classifica em dez níveis cada uma das pessoas que tiveram a doença: o zero a assintomática, um a doença com poucos sintomas, dois com mais sintomas e no nível três começam sintomas importantes. E até 10, que é a morte.

Não tivemos nenhum caso de morte. E tivemos pouco casos de nível 9, nível 8. A conclusão é que a vacina protege 100% dos casos contra doenças graves. E protege importantemente, a partir do nível 3, as outras condições.

Fazendo o cálculo entre as pessoas que tomaram a vacina e o placebo, é um proteção de 78%. Uma proteção muito boa. Só que eles excluíram o nível 01 e 02, com eficácia pouco superior a 50%.

O dado deve ser divulgado é da eficácia em torno de 53% e 54%. Isso não é ruim. A vacina protege e é essa a nossa expectativa.

[Em coletiva de imprensa nesta terça (12), o Butantan divulgou que a CoronaVac registrou 50,38% de eficácia global nos testes brasileiros, acima dos 50% exigidos pela Anvisa e pela OMS].

O ruim pra essa história toda é a forma de se comunicar com a sociedade, sem transparência. Muitas vezes, nós, profissionais de saúde, achamos que por trabalhar por uma coisa que é complexa, a população não entende.

É provável que uma parte da população não entenda. Mas uma parte entende, entende muito bem e quer saber das coisas. Comunicação clara e cristalina é fundamental.

A vacina contra o coronavírus deverá ser anual como a da gripe? Temos alguma perspectiva nesse sentido?

Infelizmente como começamos a testar essas vacinas a partir de junho e julho do ano passado, só temos 6, 7 meses de observação. Podemos dizer que temos uma experiência como a vacina do ébola, que é de vetor viral com imunidade que dura quatro ou cinco anos, e a do sarampo, de vírus inativado, que com uma dose de reforço, dura a vida inteira.

Poderia dizer que a vacina de vírus inativado do Butantan vai durar a vida inteira porque a do sarampo dura a vida inteira. Por outro lado, a da gripe é de vírus inativado e dura um ano. Então não dá pra afirmar nada.

Vamos ter que continuar fazendo a avaliação de quem teve a doença por um lado e de quem foi vacinado por outro lado e acompanhar a persistência da produção de anticorpos nessas duas populações. Não tem outra saída.

Caso a vacinação seja iniciada de forma fragmentada e não unificada, nacionalmente, pode atrapalhar o combate à pandemia? Uma pessoa vacinada em São Paulo pode viajar e carregar o vírus para outros estados?

Até onde estamos acompanhando, esse risco não existe mais. Vamos ter um processo único de vacinação no Brasil. Não vai ter vacinação em São Paulo e no Brasil. Será um processo único, coordenado pelo Ministério da Saúde e executado pelas secretarias estaduais e municipais de saúde. Isso já está resolvido.

Provavelmente vai começar antes do dia 25. Assim que a Anvisa aprovar o registro emergencial da Astrazeneca e da Coronavac, eles poderão ser utilizados. Espera-se que isso ocorra antes do dia 20.

Ocorrendo antes do dia 20 e tendo a vacina no Brasil, porque ainda falta chegar a da Astrazeneca… provavelmente deverão chegar dois milhões de doses do Serum Institute, que fica na Índia.

Já tem dez milhões de doses da vacina CoronaVac prontas no Butantan. Com essas doze milhões de doses, somando as da Fiocruz, a tripartite que reúne o governo federal, governo estadual e as secretarias municipais de saúde, tomará uma decisão de distribuição pelo Brasil e iniciaremos o processo de vacinação.

O ponto fraco dessa história não é a seringa, porque seringa tem pra esses 12 milhões de doses. Não tem para até o fim do ano, mas é planejar e terá. O grande problema é a comunicação. Como é que vai ser?

Primeiro, quem será vacinado. A ordem de vacinação é copiada e colada do modelo americano e europeu de vacinação. Só que a sociedade brasileira não é a sociedade de um país acima da linha do Equador.

Somos uma sociedade muito desigual. A oitava maior desigualdade do mundo. Vacinar com as mesmas regras dos países que estão ao norte do Equador é de uma idiotice muito grande. Quem mais morre aqui são os pobres.

Os idosos serão a maior parte da mortalidade com certeza [em nível global]. Em Portugal, 97% das mortes ocorreram na faixa maior de 55 anos.

Acontece que os mais velhos ficam em casa. E os adultos jovens que tem que buscar comida, trabalhar, não ficam. São esses que vão ter a doença. Nós tínhamos que revisitar essa lista. Quem está morrendo mais são os pobres, negros e analfabetos. E estamos fazendo outro plano de vacinação.

Deveríamos revisitar e incluir nesse plano, além dos profissionais de saúde, quilombolas, indígenas e população de rua, os primeiros que devem ser vacinados, uma escala entre aqueles que têm que se expor por estarem em setores essenciais.

Trabalhadores do transporte coletivo, da segurança pública e particularmente os professores da educação básica. Para diminuir o prejuízo que estamos tendo. Um ano sem aulas para nossas crianças. Não estou tão preocupado com conhecimento e sim com a socialização.

O grande resultado da ação da escola é a socialização. Então vamos vacinar os professores para que voltem a dar aula e as crianças voltem a frequentar as escolas.

Essa é uma questão que teríamos obrigatoriamente que revisitar. O Ministério da Saúde não tem competência para determinar quem deve ser vacinado. Tem que chamar os especialistas, as pessoas que entendem disso, para que essas pessoas tomem a decisão e proponham uma regra para a sociedade, que seja mais consentânea com nossa realidade.

Até mesmo porque a primeira versão do plano excluía indígenas, por exemplo.

Sim. E continua inadequado, ao que tudo indica, por essas questões que apontam que os grupos mais atingíveis pela doença não estão sendo cobertos.

Ainda que tenha o projeto nacional, o Doria manteve a vacinação em SP pro dia 25. Acredita que esse cronograma será atropelado?

Ele quer sair na foto para ser o dono da vacina em 2022. Só que ele está ignorando o caminho da história. O caminho da história não passa por ele ser candidato a presidente. Isso é uma idiotice e ignorância dele.

O caminho da história passa por distribuirmos o imunizante para toda a população brasileira, que o governo federal tem que nos propiciar.

Independente de quem vai ser vacinado. Vamos supor que a regra do governo fique. Os velhinhos com mais de 80 anos tenham que ser convocados para ser vacinados. Como isso vai acontecer?

Qual seria uma ideia inteligente? Fazer um plano para que as pessoas se registrem por meio de algum sistema eletrônico. Aqueles que não têm acesso ao computador, vão direto na unidade [de saúde].

Mas quem puder fazer o cadastro, 80% da população brasileira tem esse acesso, faz o cadastro e marca o dia e uma hora pra fazer a vacinação.

Já poderíamos ter um software pra fazer isso. Temos o número do Cartão do SUS [Sistema Único de Saúde]. Não estamos discutindo isso por inépcia do governo federal.

No meio dessa inépcia, dessa falta de capacidade de comunicação do governo federal é que o Doria coloca essas pequenas cunhas para demonstrar uma coisa que ele não é, não pode ser e não deve ser. Ele não é o pai da vacina.

A vacina é do povo brasileiro. E ele não conseguirá usar essa vacina como capital político. Não foi ele quem fez isso. Quem fez isso foi o Butantan e ele desviou o Butantan no meio do caminho.

Nós vamos ter que denunciar isso. Ele tem que entender que se ele quiser ser eleito, que seja, mas não será graças à vacina. Terá que fazer outro conjunto de obras para sua eleição.

O senhor comentou sobre a desigualdade no Brasil e a inadequação do plano de imunização. E em meio a essa discussão surgiu a possibilidade da comercialização da vacina indiana Covaxyn por clínicas particulares. Como lê essa possibilidade e como ela pode afetar a população como um todo?

É de uma profunda imoralidade. Nenhuma das pessoas com as quais eu discuti, mesmo do setor privado, conseguiram rebater a questão da imoralidade. É imoral. Não tenho nada contra a iniciativa privada participar do processo de imunização desde que a vacina seja distribuída pelo Estado, desde que a regra de vacinação seja estabelecida por isso.

A hora que quiserem participar, está aberta a participação. Agora, mudar a ordem de entrega da vacina porque o sujeito tem dinheiro para pagar a vacina é de uma imoralidade sem tamanho.

Essa imoralidade é uma imoralidade para qual o brasileiro tem que acordar. Essa imoralidade estamos enxergando agora porque estamos morrendo com essa doença. Mas é o mesmo que temos na fila da cirurgia cardíaca, ortopédica, na fila do início para o tratamento de câncer.

Quem tem dinheiro trata antes. Isso é imoral. Temos que estruturar filas únicas. Quem tem dinheiro não pode chegar antes de quem não tem dinheiro. É possível e obrigatório que nós consigamos estruturar um sistema de saúde público e privado com as mesmas regras.

Como fazemos com os transplantes, onde há uma fila única. Quem tem dinheiro não se beneficia do fato de ter dinheiro. Temos que acordar para a invisibilidade dessas filas. A de acesso à vacina não pode ter critérios diferentes.

Caso não alcancemos a igualdade de imunização, corremos o risco do coronavírus se tornar uma doença que atinge apenas as classes mais baixas?

Essa idiotice precisamos conseguir comunicar à sociedade: se o vírus continuar a circular, não sabemos porque, mas sabemos como ele continuará mutando. Cada vez que o vírus entra em uma célula nossa e ordena ao maquinário genético nosso para reproduzi-lo, reproduzimos alguns erros, ao acaso.

Isso cria novas variantes do vírus. Essas novas variantes podem ter como consequência, como o caso da variante inglesa, uma taxa de transmissibilidade mais alta. Mas o vírus continua sendo suscetível às vacinas que existem hoje, elas continuam fazendo efeito.

Mas caso continue mutando poderá, ocasionalmente, se transformar em um vírus resistente às vacinas que temos à disposição hoje. Se os ricos se vacinarem e os pobres continuarem a ter a doença, daqui a algum tempo teremos um vírus mais resistente.

Ou nós conseguimos cobrir toda a população, não só no Brasil, mas no mundo, ou esse vírus irá continuar circulando e irá nos devolver um vírus resistente às vacinas. Ai a importância da comunidade de rebanho.

Temos que conseguir vacinar de 70% a 80% da população mundial ou o vírus continuará circulando com as consequências previsíveis de uma mutação.

O senhor acredita que até o fim do ano conseguimos vacinar mais da metade da população brasileira?

Acredito que até outubro e novembro vacinaremos o alvo da vacinação. Os 160 milhões de brasileiros com mais de 18 anos. Paralelamente a isso estaremos produzindo os estudos sobre a eficácia e segurança dessas vacinas nos grupos populacionais com menos de 18 anos e deveremos aí começar a pensar como usar o imunizante nessa população de menor de idade.

É uma perspectiva adequada. Boa seria se conseguíssemos fazer o que faremos com a campanha da gripe. Março, abril e maio teremos a campanha da gripe que será junto à da covid-19. São 80 milhões de doses da vacina que já estão produzidas e deverão ser distribuídas na nossa rede para vacinar idosos, profissionais de saúde e crianças. E evitar a morte muita gente.

Conseguimos fazer nesses três meses que antecedem o inverno, período onde há maior transmissibilidade do vírus da gripe. Esse é um sucesso. Aplicar 80 milhões de doses em três meses, como fazemos nos anos anteriores.

Vacinar contra a covid até setembro ou outubro é bom mas não é um sucesso. Seria caso fizéssemos como com a [vacina] da gripe.

Há menos de um ano recebemos a notícia da primeira confirmação de contaminação pelo novo coronavírus no Brasil. O senhor imaginava que neste momento, estaríamos com essa marca de 200 mil mortes? Isso era imaginado?

Tivemos um número de mortes muito superior ao que eu tinha como expectativa do número de mortes. Quando essa crise começou, não esperava que chegássemos a mais de cem mil mortes.

Não esperava porque no início conseguimos achatar a curva pandêmica graças ao isolamento social. E de repente perdemos a mão graças à inação dos governantes em nível federal, nos estados e municípios. E aí, de repente, o número de mortes continua subindo, inclusive agora.

A Gripe Espanhola, que foi um desastre muito superior a esse, matou cerca de 35 mil brasileiros quando o Brasil tinha 29 milhões de brasileiros.

Hoje, mantidas as mesmas condições, teríamos 255 mil mortes se a gripe espanhola acontecesse. Estamos com mais de 200 mil mortes e com certeza vamos ultrapassar o número de mortes da gripe espanhola.

É verdade que a gripe espanhola aconteceu em um período mais curto e acabou não se sabe como. Talvez atingindo a imunidade de rebanho ou talvez por conta de uma mutação ao contrário. As mutações que os vírus sofrem podem tornar inúteis as vacinas e também podem torná-lo incapaz de infectar.

Eu não esperava que estivéssemos vivendo a emergência sanitária do tamanho que vivemos. Infelizmente, pela inépcia dos nossos governantes. Mas os cientistas conseguiram produzir as vacinas.

Temos as vacinas. Vamos ver se termos a competência de aplicá-las da melhor maneira possível. Em termos de perspectiva, é um jogo aberto. Espero que essa pandemia deixe dois legados fundamentais: o primeiro é a importância do SUS como nós temos. E o segundo que o Brasil e o mundo acorde para a importância de enfrentar a desigualdade social.

A desigualdade social é a principal enfermidade da qual a humanidade sofre. Até o final do século 19, a principal enfermidade era a escravidão. Ter a posse de pessoas era normal. Pois bem. Está na hora de acordarmos e vermos que a desigualdade não é normal.

E que as sociedades podem acabar com ela se resolverem ter políticas assertivas contra a desigualdade.

 

Fonte: Lu Sudré/Brasil de Fato